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Carta aberta – Luta Pela Legalidade

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Publicado em: 29 de Abr de 2024

A Constituição de 1988 deixou patente a divisão de tarefas na persecução penal: grosso modo, à Polícia Civil coube a realização das investigações criminais, o Ministério Público recebeu a primazia de promover a ação penal, e o Poder Judiciário foi encarregado de realizar o seu julgamento – era a intenção do legislador constituinte dividir tais atribuições justamente para garantir maior proteção aos cidadãos e evitar abusos por parte do Estado. Os papéis seriam totalmente diversos, mas complementares, e a “opinio delicti” de uma Instituição não vincularia a das demais.

Já a Polícia Militar ficou encarregada do policiamento ostensivo, isto é, quedou responsável de evitar o cometimento das infrações penais com a sua presença assertiva.

Tal medida foi tomada levando-se em conta critérios técnicos e científicos, além de se fincar em razões históricas e sociológicas.

Esta decisão foi festejada no mundo jurídico e se chegou mesmo a afirmar que o sistema de investigação de infrações penais no Brasil estava à frente da maioria dos demais países, vez que a tripartição das atividades de persecução se consubstanciava em verdadeira preocupação com os investigados, com a lisura do procedimento e com a sua imparcialidade.

Não por outra razão, a Polícia Civil perdeu a possibilidade de dar início à ação penal, como então ocorria, revogando-se a Lei n. 4.611, de 2 de abril de 1965. Também não mais pôde expedir mandado de busca e apreensão, tarefa, agora, exclusiva do Poder Judiciário. A Polícia Civil, em nome da garantia dos direitos individuais e almejando também uma “persecutio criminis” imbuída de proteção a esses mesmos direitos e da observância aos ditames constitucionais, submeteu-se imediatamente a tais preceitos.

Todavia, o respeito às normas constitucionais de 1988, ao que parece, padeceu de grande dose de relativismo por parte das outras instituições, haja vista que, passado algum tempo, e para a estupefação dos principais juristas do Brasil, eis que o Ministério Público também passou a efetuar investigações criminais, como se Polícia Investigativa fosse – os argumentos seriam os de que as Polícias Civis não eram suficientemente preparadas para realizar investigações de grande porte e nem detinham a independência necessária para o enfrentamento dos grandes e poderosos infratores. Outro argumento, e este solerte: as Polícias Civis também não possuíam idoneidade para tanto, vez que a corrupção em seu seio era por demais gravosa.

Quase que concomitantemente, também a Polícia Militar passou a desenvolver atos de investigação, solicitando, inclusive, ao Poder Judiciário, a concessão de mandados de busca, tudo ao arrepio da Constituição Federal e da legislação ordinária, em nome da celeridade, da “pronta resposta à sociedade”, e mais, para contornar a incapacidade funcional e moral da Polícia Civil.

Tem mais. Com o advento da Lei n. 9.099/95, que criou o Juizado Especial de Pequenas Causas, houve nova violação aos preceitos legais, vez que a Polícia Militar também passou a se arvorar em confeccionadora dos Termos Circunstanciados, sob o argumento inaceitável de que estes não passavam de meros “registros” de ocorrência. De nada valeram, novamente, os ensinamentos expendidos pelos mais destacados juristas brasileiros, ao apontarem que essa atribuição falecia à Polícia Militar – infelizmente, o Poder Judiciário e o Ministério Público, em total arrepio ao contido na lei, olvidando que o Termo Circunstanciado é ato indiscutível de investigação criminal e sob o pretexto da ineficiência da Polícia Civil e da demora na confecção do documento, que obrigaria as guarnições policiais militares a perderem tempo valioso nas unidades policiais, encamparam mais esta arbitrariedade.

No ano de 2011, veio à lume a PEC n. 37, cujo objetivo era o de colocar ordem neste “imbróglio”, objetivando assegurar aquilo que já estava devida e claramente assentado na Carta Maior: as investigações de infrações penais que não fossem militares, seriam da alçada das polícias civis e federal. O objetivo dessa emissão normativa não era outro senão o de declarar, em definitivo, que a persecução criminal no Brasil era tripartida e não um sistema tresloucado, com violações de direitos e erros de toda a ordem.

Curiosamente, vários integrantes daquelas instituições que também tinham o papel de velar pela legalidade, pela observância estrita da lei, especialmente, no campo penal, foram os primeiros a se posicionar contrariamente, taxando a PEC 37 de “PEC da impunidade” – ou seja, deixaram patente que, se fosse aprovada, o crime, especialmente o de grande coturno, irromperia no Brasil, insuflando a ideia de que as Polícias Civis não eram confiáveis para exercer tal “múnus”. Lamentavelmente, este posicionamento foi encampado pela mídia e  vários políticos, e a PEC não foi aprovada.

E foi com tristeza que se viu parte da sociedade, que não conhece a fundo as características e deficiências das instituições e bem menos o jogo velado pelo poder, festejar a decisão.

Neste ponto, é preciso frisar que, então, desde 1988, optou-se por se ignorar as emissões normativas, sob a justificativa de um melhor enfrentamento da criminalidade, ao que parece se adotando a ideia de que “os fins justificariam os meios”, não importando o quanto se devesse afastar do regramento jurídico para tal desiderato. Afinal de contas, o Direito é “ciência do dever ser” e, portanto, bem mais “maleável” que as ciências naturais: basta torturar as palavras, retorcer os conceitos e, “voilá”: o que ontem era defeso, hoje passa a ser padrão.

A esta altura, é conveniente se abrir um parêntese: é muito interessante observar como atuam os gestores brasileiros. Já se disse, e com razão, decidem muito mais baseados no senso comum do que na análise técnico-científica. Isso para não se dizer que tomam decisões meramente protelatórias ou ainda imediatistas, tudo visando ao próprio interesse – não é à toa que, atualmente, temos políticos, mas não Estadistas.

Nossos gestores preferem simplesmente apagar incêndios do que realmente dar enfrentamento às mazelas que nos afligem: “vão empurrando com a barriga” e, com sorte, deixarão para o próximo gestor, o cenário caótico: não têm coragem de abordar as causas verdadeiras dos problemas; ao invés disto, vão comendo pelas beiradas, rezando para que o caos não exploda.

De volta ao tema, aponte-se que a Polícia Civil paulista tem sérios problemas e não se pode ignorá-los: há imenso déficit de pessoal; os policiais não atendem bem o público e nem se especializam (na média, um policial civil com mais de 20 anos de serviço, terá feito, no máximo, apenas cinco cursos de aperfeiçoamento, já contando aí os destinados às promoções); e padecemos, e muito, com a corrupção.

Entretanto, há que se perquirir a razão da existência dessas mazelas e divulgá-las para a sociedade.

Não temos pessoal porque os Governos não promovem, com frequência, a abertura de novos certames; não atendemos bem o público porque os Governos não nos preparam adequadamente: ao contrário, não foram poucas as determinações governamentais no sentido de se abreviar os cursos de formação para atender a interesses politiqueiros, para passar a impressão de que o Governo de plantão se importava com a Segurança Pública. Represados os concursos públicos, quando abertos, miravam centenas de vagas, não sendo difícil a conclusão de qual o nível intelectual e moral de alguns dos aprovados, vez que se privilegiava a quantidade ao invés da qualidade. Nem se mencionem os casos, inúmeros, de policiais civis perseguidos pelos próprios Governos unicamente porque cumpriram a lei em face dos amigos dos amigos.

Os Governos sabem das nossas mazelas? Claro que sabem. Mas por que não adotam providências para sanar tais gravames?

De volta aos nossos pseudo-gestores, é muito intrigante notar que, quando alguma instituição não vai bem, ao invés de se trabalhar com seriedade para elidir os problemas que apresenta e recuperá-la dignamente, prefere-se passar parcela de suas atribuições para outra,  sem a promoção de qualquer mudança na primeira. Com o tempo, também a segunda começará a apresentar problemas, vez que não concebida para o exercício de atribuição diversa – e aí, teremos duas instituições problemáticas.

Existe ainda outro tipo de solução muito ao gosto de nossos “gestores”: quando não cumulam instituição diversa com atribuições a ela estranhas, simplesmente, criam outra para tanto, a qual, ante a ausência de recursos, também restará capenga com o decorrer do tempo.

Mas a propaganda político-midiática foi feita e os louros, recebidos. O dinheiro público gasto? Ora, é público.

Soluções pequenas, tomadas por gestores pequenos. Resultado: piora dramática.

Como exposto no início, desde o final da década de 1980, o Ministério Público faz investigações (ao arrepio da lei, não esqueçamos), sob o argumento de que daria uma resposta à altura à criminalidade. Resultado: o crime explodiu, quantitativa e qualitativamente, bem debaixo de seu nariz. Aliás, foi aqui, no Estado de São Paulo, onde o Ministério Público foi o pioneiro em se proclamar investigador, que surgiu o maior, o mais articulado e o mais perigoso grupo criminoso do Brasil, e que hoje já é considerado uma organização criminosa de cunho internacional.

Não é irônico como as coisas descambam quando os critérios legais e técnicos são olvidados?

E a Polícia Civil, nesse período todo? Nossos gestores se preocuparam em enfrentar com coragem as suas deficiências? Em transformá-la realmente naquilo para o qual foi concebida, o enfrentamento do crime organizado? Não. Sofreu ainda maior sucateamento. Foi, simplesmente, relegada a segundo plano e é impressionante como, apesar de todas as suas mazelas, ainda consegue, com alguma galhardia, cumprir o seu papel.

É, ainda, de se perguntar: por qual motivo, agora, com a transferência de outra atribuição da Polícia Civil, desta feita para a Polícia Militar, o resultado seria diferente?

Albert Einstein já pontificava: “continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes, é insanidade”.

Nem mencionaremos outra vez as limitações legais já apontadas. Parece que, no Brasil de hoje, a lei não está mais valendo grande coisa…

Mas aponte-se que, com a confecção dos Termos Circunstanciados por parte da Polícia Militar, haverá menos policiais militares na atividade-fim, que é o policiamento ostensivo; haverá a necessidade de se ampliar dependências para o armazenamento de bens nos quartéis; o tempo gasto nas unidades policiais doravante será gasto nas unidades militares; certamente serão necessárias novas contratações, bem como a criação de algo parecido com um cartório policial civil em todas as unidades policiais militares do Estado. E isso, sem mencionar a necessidade de se promover treinamento para atividades complexas como a tipificação penal, os custos com TI, software, hardware, etc. Vai ser preciso todo um conjunto de providências que custarão dinheiro, muito dinheiro.

Mas não se esqueça, o dinheiro é público, ora bolas.

No entanto, resolver decididamente todos os graves problemas da Polícia Civil, que seria o mais lógico, o mais científico, o mais sensato e o menos custoso…não. Isso daria muito trabalho e dor de cabeça para os  microgestores. Por que recuperar a instituição que foi criada especificamente para a apuração das infrações penais? Não faz sentido para os nossos luminares. E se não desse certo? Como ficaria a imagem dos nossos bravos, operosos e políticos gestores? E como esse fracasso os afetaria nas eleições? Mas, espere um pouco: e se desse certo? Uma Polícia Civil íntegra, coesa e preparada não os investigaria  também? Talvez não estariam criando cobra para lhes morder? Afinal de contas, ninguém cria cachorro para morder o próprio dono. Não…melhor não correr esses riscos.

O que fazer, então? Ora, vamos alijá-la de qualquer procedimento criminal que seja relevante e midiático. Afinal, a Polícia Civil não é confiável. Vamos apenas nos apropriar de todo o trabalho árduo de investigação que ela realizou nesses anos, de todas as informações conquistadas a duras penas, de todos os indícios colhidos e interpretados por horas a fio e, então, damos nela um “passa-moleque”.

E foi o que fizeram com a Polícia Civil na “Operação Fim da Linha”.

Parece mesmo o fim da linha para a principal, senão, a única instituição responsável pelo enfrentamento do crime organizado. A Polícia Civil não é apenas polícia de investigação criminal (polícia repressiva): ela é polícia de inteligência e estratégia e tem papel fundamental na prevenção qualificada da criminalidade. Mas está padecendo de graves problemas e nossos gestores não parecem ter a menor disposição de enfrentá-los. Mas isto não tem mesmo urgência e nem necessidade: afinal, graças à atuação do Ministério Público e da Polícia Militar no desempenho de investigações, o crime, principalmente o organizado, foi completamente debelado no Estado de São Paulo…ou não?

É preciso que os segmentos mais representativos da sociedade paulista (empresários, jornalistas, políticos, cientistas sociais, líderes religiosos e outras forças vivas e honestas) se congreguem e passem a discutir Segurança Pública e o estado em que se encontra a Polícia Civil por falta de empenho e coragem de gestores na elisão de seus mais ingentes problemas. Não há mais tempo para experimentações empíricas, com gasto inócuo do dinheiro público, afastamento dos critérios técnicos e burla da própria lei.

E esse é o chamamento que a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo – Adpesp e o Grupo Guerreiros fazem a todas as pessoas acima mencionadas: para que possam conhecer, de fato, a Polícia Civil,  o seu perfil institucional, a sua missão, a sua importância e, principalmente, as suas mais graves deficiências para que, juntos, sejamos ouvidos pelos nossos gestores e, assim, possamos, de fato, garantir a segurança da sociedade paulista.

O crime está evoluindo, especialmente aquele levado a efeito pelas organizações criminosas; está se mesclando com o poder público, estendendo a sua influência para círculos que dantes eram inatingíveis, e a principal instituição concebida para o seu correto enfrentamento, por razões ora amadoras, ora mesquinhas, mas sempre covardes, não consegue cumprir a contento o seu destino. E o que é pior: acaba sendo sempre a única culpada pelas suas mazelas porque, ao fim e ao cabo, todos os verdadeiros responsáveis se safam. Como já ressaltado: é um milagre que a Polícia Civil ainda resista, e embora “desorganizada”,  continue apresentando excelentes trabalhos na defesa da sociedade paulista.

A continuar assim, com a criminalidade a todo vapor e sem o enfrentamento adequado, logo, logo, estaremos apelando ao Exército. Mas, ele também não foi feito para investigar, e então saberemos que já é tarde demais.

 

Confira o documento original.

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