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O procedimento investigatório criminal (PIC)

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Publicado em: 23 de Nov de 2020

O Brasil vem assistindo a prisões arbitrárias em prejuízo da presunção de inocência

Em maio de 2015 o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou tese de repercussão geral no sentido de que o Ministério Público (MP) dispõe de competência para promover, por autoridade própria e por prazo razoável, investigação de natureza penal, desde que respeitados os limites dos direitos e garantias individuais que assistem a qualquer suspeito, indiciado ou não, sob investigação do Estado (RE 593727, repercussão geral, relator ministro Cezar Peluso; relator do acórdão, ministro Gilmar Mendes. Publicado em 8/9/2015). Foi assim que nasceu o procedimento investigatório criminal (PIC), que deveria assemelhar-se ao inquérito policial.

Acontece que, munidos da possibilidade de investigar, denunciar, processar e pedir a condenação de alguém, os representantes da nobre instituição do Ministério Público Federal, em determinados casos, passaram à margem de alguns princípios fundamentais de justiça, tais como o direito à ampla defesa, à imparcialidade do agente público (apesar de ser parte no processo, a atuação do membro do MP deve ser isenta e ponderada, não se admitindo ideias preconcebidas ou empenho persecutório exacerbado), além dos direitos civis e dos direitos humanos previstos na Constituição federal. Tanto isso é verdade que, em janeiro de 2018, o Conselho Nacional do Ministério Público entendeu por bem regulamentar o procedimento referente ao PIC, estabelecendo normas para impor balizas de fundamental importância, dentre as quais a prevista no artigo 9.º, da Resolução 183, de 24/01/2018, que assim diz: “O autor do fato investigado poderá apresentar, querendo, as informações que considerar adequadas, facultado o acompanhamento por defensor”.

Em verdade, não é recomendável deixar a cargo do suspeito a decisão de prestar informações sobre os fatos a ele atribuídos, mesmo porque, na prática, o investigado não fica sabendo que está sendo submetido à persecução penal, pois tudo é apurado sem divulgação e sem que se lhe deem ciência. Dessa forma, quando a acusação vem a público, já se encontra em curso uma ação penal, anteriormente desenvolvida de forma sigilosa durante um PIC, que desconsiderou o direito de ampla defesa, ao não permitir a manifestação do investigado, que ignorava a existência do procedimento contra si instaurado.

Houve casos em que os tidos como suspeitos, cientificados da existência do PIC por outros meios, não oficiais, solicitaram sua oitiva diretamente aos membros do parquet encarregados das investigações, mas, ainda assim, tal solicitação não foi considerada e os investigados não conseguiram ser ouvidos. Diante da impossibilidade de o suspeito apresentar sua versão dos fatos, o processo penal começou desprezando o direito à ampla defesa.

É de observar que o Código de Processo Penal, ao abordar o inquérito policial, determina em seu artigo 6.º: “Logo que tiver conhecimento da prática de infração penal, a autoridade policial deverá: (…) IV- Ouvir o ofendido; V- Ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III, do Título VII, deste livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura”.

Explícita, portanto, a preocupação que sempre teve a legislação Pátria em permitir a ampla defesa do acusado. No entanto, a criação do PIC, tanto no texto escrito quanto na prática, aboliu tais direitos, já de há muito consolidados. Em certos casos, o investigado foi denunciado sem nenhuma observância das normas e garantias individuais.

A persecução penal ganhou as manchetes divulgando fatos ainda não provados e atribuindo condutas criminosas a determinadas pessoas sem dar a elas o direito de defesa previsto na Constituição federal e no Código de Processo Penal. Escritórios de advocacia foram vasculhados pela polícia, mandados genéricos de busca e apreensão foram emitidos, em afronta aos mandamentos do artigo 133 da Constituição federal, que estabelece a inviolabilidade dos advogados quanto a seus atos e manifestações no exercício da profissão.

O Brasil vem assistindo a prisões arbitrárias e espetaculosas e à prevalência do escândalo em prejuízo da presunção de inocência. As últimas investidas midiáticas contra escritórios de advocacia e residências de advogados, de desembargadores e ministros em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília mostraram que ninguém está a salvo de uma condenação sem culpa formada; de uma punição injusta ou desproporcional, em nome de uma pseudojustiça praticada por pessoas que buscam alimentar suas próprias vaidades. Reputações são jogadas na lama por meras elucubrações, sem prova de ilicitude e sem que o investigado tenha sequer sido ouvido. Seria o fim do direito de defesa?

A Ordem dos Advogados do Brasil está atenta a esses eventos e, recentemente, aprovou provimento que regula a atuação contra escritórios de advocacia, na sessão realizada em 27 de outubro de 2020, a fim de evitar a violação das prerrogativas previstas em lei. Esperamos, assim, que não haja mais abuso de autoridade.

 

Luiza Nagib Eluf é advogada e escritora. Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, em 23 de novembro de 2020

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