Notícias

Na pandemia, é imprescindível audiência de apresentação e garantias

Posted by:

Publicado em: 1 de Jul de 2020

Autores: Fernando David de Melo Gonçalves e Rafael Francisco Marcondes de Moraes 

A pandemia em curso da Covid-19, doença causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), mobiliza a todos. A trágica disseminação global da moléstia tomou de assalto os sistemas de saúde em escala universal, muitos hoje colapsados.

No Brasil, foi editada a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, destinada ao enfrentamento dessa emergência de saúde, prevendo medidas para proteção da coletividade como isolamento, quarentena, exames médicos e testes laboratoriais compulsórios, além de estudos epidemiológicos e ações envolvendo cautelas no manejo de cadáveres.

O preocupante cenário ensejou posturas estatais voltadas ao distanciamento social, sobretudo mediante implantação de rotinas de trabalho remoto por meios eletrônicos, ressalvados serviços essenciais, notadamente nas áreas de saúde e de segurança.

Nesse contexto, no âmbito da atividade essencial de polícia judiciária, elo entre a segurança pública e a Justiça criminal, buscou-se soluções tecnológicas como o aperfeiçoamento de canais virtuais aptos a coletar notitia criminis, de modo a evitar aglomerações nas delegacias de polícia, suplantar embaraços burocráticos e insular o atendimento presencial nas efetivas urgências, a exemplo da audiência do artigo 304 do CPP para eventual decretação de prisões em flagrante. Aliás, o relevo desta audiência extrajudicial constitui objeto do presente ensaio.

Anote-se que a recente Lei Anticrime (Lei 13.964/19), entre outras mudanças, inseriu a denominada audiência de custódia no artigo 310 do CPP, que cuida da apreciação judicial da prisão em flagrante. Na véspera do início da vigência do diploma reformador, decisão liminar na ADI 6.299, em trâmite no STF, suspendeu a eficácia de dispositivos da Lei Anticrime, mormente o que prevê relaxamento da prisão em flagrante pela não realização da audiência de custódia (CPP, artigo 310, novo §4º), reputando como consequência desarrazoada a ilegalidade da prisão flagrancial pela não realização da audiência de custódia no prazo de 24 horas.

Tal decisão, diga-se de passagem, contraria a ratio essendi do próprio instituto, ao menos em sua leitura restritiva. A audiência de custódia tem origem na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto 678/92, artigo 7.5) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (Decreto 592/92, artigo 9.3), no bojo dos quais a apresentação pessoal dos autuados em flagrante às autoridades judiciais deve se dar, frise-se, sem demora. De fato, esse critério temporal aberto foi interpretado açodadamente pelo CNJ em sua Resolução 213/15, como 24 horas da comunicação do flagrante [1].

Ocorre que, para viabilizar escorreita aplicação da audiência de custódia no Brasil, país baleia com o quinto maior território do mundo, açambarcando realidades sociais e geográficas distintas, não se poderia impor lapso temporal estanque para apresentação do custodiado em flagrante ao juiz togado. Para equacionar essa situação, dando maior concretude ao conceito jurídico indeterminado mencionado (apresentação sem demora), é digna de nota outra idiossincrasia. Esta, enigmaticamente olvidada pela Resolução 213/15 e pela Lei Anticrime, também encontra amparo nos diplomas internacionais de resguardo aos direitos fundamentais, tanto no sistema interamericano (CADH, artigo 7.5), quanto no sistema europeu (Convenção Europeia de Direitos Humanos, artigo 5.3). Trata-se da expressa possibilidade da audiência de custódia ser presidida por outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais, o que verificou-se no Brasil por intermédio da atuação do delegado de polícia. Desde o advento do Código de Processo Criminal de 1832, esse requisito de imediatidade na análise da prisão-captura vem sendo concretizado pelo delegado de polícia, autoridade à época indicada entre desembargadores e juízes, a qual, por conseguinte, conservou funções judiciais advindas da carreira que a originou, como o controle da legalidade de custódias, a tutela de garantias, o arbitramento de fiança e a expedição de alvará de soltura.

Em outras palavras, o precípuo filtro estatal de legalidade da voz de prisão em flagrante precariamente proferida (captura), durante longos 23 anos ininterruptos (interregno do Decreto 678/92 até a Resolução 213/15), foi levado a cabo pela autoridade policial, atendendo ao comando convencional, diga-se de passagem, de índole supralegal [2], ou seja, hierarquicamente superior ao da Resolução e da Lei Anticrime. Porém, ante dificuldade de reconhecimento formal do delegado de polícia como a outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais, a problemática a ser enfrentada não está tanto na nomenclatura a ser conferida à sedimentada audiência do artigo 304 do CPP — se ela compreende ou não audiência de custódia —, mas na confirmação de sua imprescindibilidade ao devido processo e aos direitos fundamentais.

Destarte, com espeque na máxima amplitude a ser conferida ao impositivo convencional de resguardo aos direitos humanos fundamentais em cotejo — apresentação sem demora — tome-se como paradigma a Recomendação 62, de 17 de março de 2020, do CNJ, contendo uma série de diretrizes para os tribunais, com destaque para o seu artigo 8º, que orienta a não realização das audiências de custódia em razão da pandemia de COVID-19, durante o período da aludida restrição sanitária. Nesse desiderato, o propósito invocado de reduzir riscos epidemiológicos no sistema de Justiça penal, malgrado louvável, superaria a necessidade de urgente avaliação de legalidade da prisão-captura?

A resposta à indagação é negativa. Mesmo assim, ainda que se considere a adoção do regime de trabalho remoto a distância durante esse estado de calamidade pública, fato é que a audiência de custódia — em sua leitura restritiva —não tem sido realizada como regra.

Eis porque notabiliza-se, mais uma vez, o mérito protetivo da audiência de apresentação e garantias do artigo 304 do CPP, na qual inclusive são ouvidos não apenas o capturado suspeito da prática delituosa, mas também testemunhas e vítimas do fato apurado, asseguradas as demais garantias processuais penais, bem como a produção e a preservação do acervo probatório. Retoma-se a dinâmica estatal de decretar a custódia em flagrante e comunicar o juízo para análise (remota, por meio digital) do auto prisional e a decisão sobre a concessão de liberdade ou conversão em prisão preventiva.

Tradicionalmente, o mínimo vital [3], na esteira da vedação ao retrocesso e da dignidade humana, já sublinhava o relevo da audiência do artigo 304 do CPP como anteparo garantista legitimador da decretação (ou não) da prisão em flagrante, à luz dos postulados constitucionais e convencionais, sob a perspectiva, agora, com a nova redação do artigo 310 do CPP, de um sistema de dupla cautelaridade [4], pelo qual tanto a autoridade policial de partida quanto a autoridade judicial, em seguida, são responsáveis por assegurar garantias dos presos e suspeitos, máxime o direito à liberdade, assentado como consectário da presunção de não culpa e da própria vida.

Outrossim, some-se à inserção da audiência de custódia no CPP pela Lei Anticrime o ilícito penal do artigo 9º, caput, da também recente nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19), que criminaliza a decretação ilegal de medida privativa de liberdade, e ter-se-á novamente a proeminência do artigo 304 do CPP como uma audiência de apresentação e garantias, na qual são aferidos os requisitos para a determinação da custódia em flagrante, como espécie do gênero decisão de indiciamento (Lei 12.830/13, artigo 2º, § 6º), consubstanciados no estado de flagrância delitiva, seu requisito temporal, retratado em uma das modalidades do artigo 302 do CPP (flagrante próprio, impróprio ou presumido), aliado à fundada suspeita, seu requisito probatório, previsto no § 1º do artigo 304 do CPP, a conferir justa causa à custódia extrajudicial [5].

A atual crise evidencia o atributo da celeridade da audiência do artigo 304 do CPP, na medida em que um indivíduo tolhido de sua liberdade ambulatorial sob aparente estado flagrancial deve ser apresentado imediatamente ao delegado de polícia, autoridade que tomará preliminar ciência dos fatos pelo breve relato de policiais ou particulares que estiverem conduzindo o capturado. Então, mediante análise jurídica, caso vislumbre respaldo para prosseguir com os atos de polícia judiciária, presidirá a audiência de apresentação e garantias do suspeito para transformar mera situação de fato (captura ou voz de prisão) em documento jurídico — auto de prisão em flagrante — hábil a encetar o processo judicial vindouro, prestigiando no seu bojo direitos de presença, de audiência e o de postular à autoridade legitimada, garantias que estruturam a autodefesa [6] e viabilizam a consecução da defesa técnica, denotando manifestações do contraditório formal e substancial na etapa extrajudicial [7].

Na senda da valorização da audiência do artigo 304 do CPP, nota-se na nova Lei de Abuso de Autoridade esforço por uma melhor compreensão dos vocábulos captura, detenção e prisão. Enquanto a captura refere-se à restrição momentânea do suspeito para que seja apresentado à autoridade competente, a detenção equivale à prisão provisória, tais como as custódias em flagrante, preventiva e temporária, distinguindo-se da prisão-pena, própria da execução penal [8].

Portanto, embora o ordenamento, ao referir-se à prisão em flagrante, não estabeleça diferenciação, há de se ressaltar que referida segregação provisória divide-se em três momentos bem distintos: 1º) abordagem, captura e condução coercitiva (prisão-captura ou voz de prisão); 2º) decretação e formalização (prisão-custódia [9] ou prisão em flagrante propriamente dita) e; 3º) recolhimento ao cárcere (ou prisão-recolhimento).

Logo, o proêmio de sopesamento decisório estatal, em atenção ao direito ambulatorial do indivíduo, reside na audiência do artigo 304 do CPP, na qual ocorrerá eventual conversão da captura em custódia mediante materialização do auto prisional, após juízo técnico-jurídico motivado do delegado de polícia. Repise-se, sem estado flagrancial (CPP, artigo 302) e fundada suspeita (CPP, artigo 304, § 1º) ninguém pode ser recolhido ao cárcere, vale dizer, não deve ser decretada a prisão em flagrante.

Assim, considerando o verbo decretar, do citado artigo 9º da nova Lei de Abuso, que significa determinar ou ordenar, diverso de executar (próprio da captura), figuram como possíveis sujeitos ativos do tipo penal as autoridades legitimadas a ordenar formalmente a custódia de alguém: o delegado de polícia como regra para a prisão em flagrante e o juiz de direito para as demais prisões cautelares [10].

A seu turno, no âmbito da segunda cautelaridade, foram mantidas no CPP as providências judiciais no exame da prisão em flagrante, arroladas nos incisos do artigo 310, com ênfase para o relaxamento da prisão ilegal, em obediência à Carta Magna (CF, artigo 5º, LXV), ainda que encontre-se parcialmente prejudicada diante da atual pandemia.

Com a proeminência da primeira cautelaridade, mais do que nunca, a ausência de elementos que preencham os requisitos traduzidos no binômio estado flagrancial (requisito temporal) e fundada suspeita (requisito probatório), torna ilegal a decretação da custódia flagrancial, enseja o denominado criptoflagrante (derivado do criptoindiciamento)[11], afasta a lavratura do auto prisional e pode resultar eventual responsabilização por abuso de autoridade, sem prejuízo da apuração do evento em inquérito policial iniciado por portaria.

Deriva desse raciocínio que a divergência de interpretação da lei ou na avaliação fática entre o delegado de polícia que decretou a custódia em flagrante e o juiz de direito presidente da audiência de custódia não constitui ilegalidade e, assim, não deve ensejar relaxamento, sob pena de conceber-se o famigerado ilícito de hermenêutica. Cuida-se, no máximo, de mera desclassificação jurídica em sede de segunda cautelaridade, a implicar concessão de liberdade provisória, cumulada ou não com medidas cautelares diversas.

Por derradeiro, para fazer valer na prática o devido processo penal e seus corolários, de prelúdio vertidos na audiência de apresentação e garantias do artigo 304 do CPP, assiste-se amargo efeito colateral: o adoecimento acachapante de policiais e de outros agentes do Estado, para os quais o múnus público prevalece, ainda que em detrimento da própria saúde.

[1] GONÇALVES, Fernando David de Melo. Audiência de custódia: desafios de sua implantação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2020, p.111.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 349703-RS. Relator Min. Carlos Britto. Brasília, 2 de dezembro de 2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 07 abril 2020.

[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p.475-476.

[4] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Audiência de custódia (garantia) e o sistema da dupla cautelaridade como direito humano fundamental. In: GUSSO, Rodrigo Bueno; SOUZA, David Tarciso Queiroz de (Org.). Estudos sobre o papel da Polícia Civil em um Estado Democrático de Direito. Empório do Direito: Florianópolis, 2016, p.197-236.

[5] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2018, p.160-168.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, p. 19.

[7] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR. Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: JusPodivm, 2018,p.103-120.

[8] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Função de magistratura da autoridade de polícia judiciária. In: BARBOSA, Ruchester Marreiros; et al. Polícia judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p.62.

[9] SAAD, Marta. Direito ao silêncio na prisão em flagrante. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (Org.). Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.435.

[10] LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova Lei de Abuso de Autoridade: diretrizes de atuação de Polícia Judiciária. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.29-30.

[11] Designa-se criptoindiciamento o indiciamento infundado, destituído da indispensável motivação exarada pelo delegado de polícia, expondo os elementos que o justificam, expressão que suscita o neologismo criptoflagrante, derivado da aglutinação do vocábulo flagrante com o antepositivo cripto, que significa oculto ou secreto, para simbolizar a arbitrária e ilegal decretação de prisão em flagrante desprovida de fundamentação e de lastro mínimo para a justa causa (fundada suspeita – requisito probatório) ou fora das hipóteses de flagrância delitiva (requisito temporal). MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, p.239-248; PAULA, Fernando Shimidt de. Criptoindiciamento. São Bernardo do Campo: Metodista, 2018, p.106-110.

 

Artigo publicado originalmente no portal Consultor Jurídico (ConJur)

0