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ENVELHECER COM OS VERBOS DA 1ª CONJUGAÇÃO

Autor: Abrahão José Kfouri Filho, ex-presidente da ADPESP e ex-Delegado Geral da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

 

Convidado para fazer uma saudação aos colegas Delegados de Polícia aposentados, ao ensejo da festa em que comemoramos as Bodas de Diamante da nossa Associação, fundada no distante ano de 1949, eu, que sempre falo de improviso, ao sabor das emoções, preferi escrever uma crônica, gênero literário ao qual venho me dedicando atualmente, inspirada no poema “Instantes”, de autoria da americana Nadine Stair, erradamente atribuído ao consagrado poeta argentino Jorge Luís Borges.

O trecho que mais me tocou foi esse:

 

“Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e
produtivamente cada minuto da vida: claro que tive momentos
de alegria. Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter
somente bons momentos. Porque, se não sabem, disso é feita
a vida, só de momentos; não perca o agora. Eu era um desses
que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de
água quente, um guarda-chuva e um paraquedas; se voltasse
a viver viajaria mais leve”.

 

Não me perguntem o porquê, mas fiz uma imediata e inconsciente associação desses versos com alguns verbos da 1ª conjugação, justamente aqueles que, terminados em “ar”, dão a sensação de movimento, de ação, de intensidade e sobretudo de vida!

Em primeiro lugar, como não poderia deixar de ser, vem o verbo “amar”, expressão maior do nosso “eu-divino”, que nos eleva à imagem e semelhança de Deus, no dom que o ser humano recebeu de conjugar e praticar os verbos dele decorrentes, como “doar”, “entregar”, “beijar”, “abraçar”, “sublimar”, “perdoar”, “conciliar”, seja como mãe ou pai, esposa ou marido, irmã ou irmão, pobre ou rico, amigo ou desconhecido. O amor é mágico, gratificante e inesgotável: quanto mais você o pratica, mais se santifica, mais se enobrece, mais é por ele libertado e mais se renova a própria capacidade de amar.

 

Nos incomparáveis versos de Khalil Gibran, cujo sagrado solo pátrio vê-se hoje mais uma vez arrasado pelo ódio e pela insensatez:

“O amor não dá nada além de si mesmo

E não toma nada além de si mesmo.

O amor não possui nem é possuído;

Pois o amor é suficiente ao amor.

Quando vós amais, não deveis dizer:

Deus está no meu coração, mas sim

Estou no coração de Deus”.

 

Sigamos por mais verbos com o mesmo sufixo em “ar” e logo nos deparamos com o grupo das tão necessárias e reparadoras amenidades: “alegrar”, “cantar”, “dançar”, “namorar”, “festejar”, “confraternizar”. Que momentos tão plenos de ação, de intensidade e sobretudo de vida plena nós sorvemos e desfrutamos quando, alegres e descontraídos, cantamos, dançamos, festejamos e namoramos! É a vida potencializada em suas mais inocentes, imemoriais e fraternas formas de expressão. Hoje é noite perfeita para dançarmos, cantarmos, confraternizarmos, porque, como disse o poeta, “a vida é feita de momentos, não percamos o agora”!

Nessas andanças gramaticais, lembremo-nos do quanto o viver em sociedade nos impõe gestos de solidariedade para com o próximo, o que encontra formas de atuação nos gestos e nas ações de “ajudar”, “apoiar”, “consolar”, “confortar”, que não deixam, a seu modo, de ser formas transversas de “amar”.  Ajudar, apoiar, consolar ou confortar um semelhante carente de atenção, de estímulo, de socorro, de um ombro amigo, mesmo de um apoio material, constituem formas de cultuar e valorizar, no outro, a nossa própria vida. Não nos deixemos, enquanto instrumentos de Deus, subjugar pela indiferença, pelo egoísmo ou pelo comodismo. Lembrem-se que nossas boas ações, tanto quanto nossas omissões, impelem vibrações pelos ares e como bumerangues da sorte, dia menos dia, voltarão sobre nós, como bênçãos ou dores.

Haverá momentos em que se farão necessárias atitudes fortes, ante situações desconfortáveis, ambíguas ou ofensivas que você não criou ou ensejou. É hora de “despertar”, “discordar”, “desafiar”, “ousar”, “brigar”, “gritar” mesmo, em defesa de sua honra, de sua dignidade, de sua família. Por índole e por formação profissional, nem cabe dizer agora a um Delegado ou a uma Delegada de Polícia como “atuar” em condições tais. Afeitos e afeitas aos desafios e aos combates, saberão como “enfrentar” com altivez e coragem tais dissabores, conscientes que sua Associação estará ao seu lado, como o faz há 75 anos.

Nos instantes de recolhimento interior, especialmente ao “deitar”, é hora de “espiritualizar-se”, conforme seja de sua crença, de seu credo; e “rezar” as orações que melhor interpretem sua gratidão a Deus, ou, mais coloquialmente, “orar”, conversando com Ele, de uma forma humilde, franca e direta.

As limitações materiais e financeiras que nossos sempre defasados salários e proventos nos impingiram ao longo de toda a carreira, levaram-nos e ainda nos levam a constantes preocupações e cautelas com nossos compromissos e nossos gastos, sejam com as despesas rotineiras com o sustento da casa, da família, antes com as escolas dos filhos, hoje com os planos de saúde, com os remédios, com a farmácia e outros sorvedouros. O verbo que mais conjugamos nesse contexto foi, com certeza, “economizar”: nas roupas, nos passeios, nos móveis novos, nos restaurantes, no carro novo. Muitos de nós, aposentados, que advogamos, ainda conseguimos uma receita extra para “amenizar” a rotina das limitações. “Gastar” é proibido; “guardar” é preciso! “Pensar” no futuro e no que “deixar” para nossos netos, eis nosso mantra. De uns tempos para cá, entretanto, comecei a “repensar” essa conduta e comecei a “mudar” meus hábitos. Nada mais de “guardar”! Meus netos que aprendam a “ganhar”. No domingo do segundo turno da eleição, após votarmos, eu a esposa fomos almoçar no Shopping Vila Olímpia. Supondo que o estacionamento estivesse vazio, passei pelo “valet” no primeiro subsolo em direção ao segundo. Estava tudo lotado e só consegui vaga no quinto e último poeirento subsolo. Resultado, amaldiçoei os quinze reais que economizei. Na semana seguinte, comprei uma garrafa de Dalmore por um “pau e duzentos”, mandei “embrulhar” para presente e dei a mim mesmo. Uma delícia! No limiar dos 85 anos, “esperar” pelo SAMU?

Antes de passar para os últimos versos, permito-me declamar uma oportuna estrofe do poema “Marionete”, atribuído a Gabriel Garcia Márquez, que diz:

“Aos homens provaria quão equivocados estão ao pensar
que deixam de enamorar-se quando envelhecem,
sem saber que envelhecem
quando deixam de se enamorar”.

 

Restaram dois verbos: “azular” e “transar”. “Azular” é um neologismo criado para designar o ato de engolir um mágico comprimido azul que nos faz retroceder uns 30 anos no tempo, sem o que o outro verbo restaria apenas no imaginário e na saudade.

Você, maridão, que apesar da idade, está amando, festejando, dançando, comemorando, confraternizando, por que desperdiçar “o momento do agora”, nesta noite deslumbrante? Então, ao “chegar” em casa, discretamente, tome um “azulzinho”, faça um charme com a esposa, elogie, beije, diga como ela está linda, reinvente-se, faça-se sedutor e aí, com devoção, ame-a apaixonada e plenamente, encerrando a noite com um fecho de diamante. Ao final, não vire para o lado e nem durma logo. Siga a regra. Elogie e torne a elogiar a mulher da sua vida. Que seja uma noite para ser lembrada!

De manhã, antes mesmo do café, lembre-se do poema que inspirou esta crônica: junte o termômetro, a bolsa de água quente, as meias de lã, a touca de tricô que a sogra teceu, o velho e surrado pijama de flanela, o chá de camomila, o guarda-chuva e jogue tudo fora gritando: “Vade retro, Satanás”!

Depois, vá até a cozinha bata dois ovos com uma Caracu ou uma Malzbier, beba tudo, respire fundo e retome, em sua plenitude, o mágico dom da vida até quando Deus permita…

 

Obrigado ADPESP.

 

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