Autor: Rafael Alcadipani é Professor Titular da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Nas últimas semanas, ações policiais ou que tem o envolvimento de policiais em São Paulo estão causando grande repercussão negativa no Brasil. Ao mesmo tempo, os indicadores de letalidade policial em São Paulo estão atingindo seus maiores níveis históricos. Embora haja uma redução de indicadores criminais desde que o novo governador assumiu o Governo de São Paulo, o fenômeno se repete em quase todo o país e antes do início da pandemia vários indicadores criminais começavam, já, a aumentar no estado. Não há fundamento científico em se atribuir única e exclusivamente a polícias a redução de indicadores criminais. A ciência da criminologia mostra que o que causa crimes sempre são múltiplos fatores e a ação policial é apenas um fato.
Durante as últimas eleições, o Brasil era outro. Havia um grande clamor popular para que se adotassem políticas de segurança pública baseadas explícita ou implicitamente na ideia de que “bandido bom é bandido morto”. O governador de São Paulo soube surfar muito bem nesta onda e prometeu que os policiais de São Paulo teriam um dos maiores salários do Brasil, a criação na PM de batalhões ao estilo Rota em todo o estado, a expansão de delegacias das mulheres 24 hs e também a criação de DEICs regionais. A Rota, embora se trate de uma unidade extremamente profissional, é utilizada politicamente por populistas quase que desde a sua criação. Falar em Rota é falar em votos. Nunca foram apresentados nenhum estudo e nenhuma análise mais criteriosa dos motivos das escolhas destas estratégias para melhorar a segurança em São Paulo. Elas parecem ter surgido mais da mente de marqueteiros do que de pessoas que estudam de forma profunda o tema. Melhores salários e melhores equipamentos sempre melhoram as polícias, mas será que novas unidades com nomes pomposos resolvem algum problema na área?
O aumento para os policiais ficou muito abaixo das expectativas dos profissionais e o governo não mostrou um claro caminho de como estes aumentos seriam feitos. Veio a pandemia e os governos dos estados estão proibidos de realizar aumento e promoções. A ideia de criar BAEPs e DEICs regionais pode fornecer imagens muito bonitas para as propagandas de TV, mas elas encontram dificuldades práticas severas. Primeiro, quando estas unidades são criadas, outros programas de policiamento são deixados de lado. Na PM, por exemplo, a criação de um BAEP significa menos investimentos, menos policiais e demais recursos para o mais importante tipo de patrulhamento, pois ele atende os chamados do 190: a rádio patrulha, a respeito da qual poucos políticos falam. Na Polícia Civil, a abertura de delegacias da mulher 24 hs significa o uso de policiais para uma unidade que muitas vezes não terá demanda, e a falta de profissionais é um grave problema nas duas polícias em especial na Polícia Civil. E mais, no caso da PM, os BAEPs são unidades forjadas para o confronto, sendo que o trabalho que executam pode muito bem ser feito pela já existente Força Tática que não precisa da mesma estrutura e não geram os mesmos custos do que os BAEPs. O governador de São Paulo também enfraqueceu a ouvidoria de polícia ao não reconduzir ao cargo um ouvidor que se mostrava totalmente independente e que produzia relatórios importantes sobre violência policial e também problemas de saúde dos policiais. Foi a ouvidoria de polícia de São Paulo que lançou luzes ao grave problema dos suicídios de policiais. Hoje, o ouvidor das polícias de São Paulo fala quase como se fosse um porta voz do governo e enfraquece o órgão de controle social, velho sonho da banca da bala hoje tão crítica do govenador. Foram criados dois secretários executivos na Segurança Pública, sendo que na Polícia Civil trata-se de um quadro eminentemente técnico, mas na PM é um policial que foi para a política. A separação entre política e polícia nunca foi tão urgente no Brasil.
O clima do mundo e do Brasil mudaram no que diz respeito a polícia. Hoje clama-se por uma reforma das polícias para que elas sejam mais próximas a comunidade e, assim, consigam ter a confiança da população para combater o crime ao mesmo tempo em que não cometam injustiças. A ciência mostra que a confiança na polícia é um dos principais fatores para o esclarecimento dos crimes e tudo o que São Paulo não precisa são unidades que favoreçam a lógica do confronto. Crime se combate com inteligência.
Coisas boas acontecem nas polícias de São Paulo que precisam ser incentivadas, mas para isso o governador precisa ouvir mais a ciência e menos os marqueteiros. A PM de São Paulo foi uma das pioneiras na implementação do policiamento comunitário no país, mas, infelizmente, este tipo de atividade policial não dá votos e não recebe os incentivos materiais e estruturais necessários. Lidar com a violência contra a mulher não requer delegacias das mulheres abertas 24 hs, mas sim policiais preparados para atender e investigar este tipo de ocorrência. Por isso, o investimento em formação de equipes especializadas que não precisam de um local fixo seria uma solução mais eficiente para os crimes contra as mulheres e os vulneráveis. A Polícia Civil precisa concentrar seus esforços de trabalho fechando, possivelmente, unidades, investindo pesadamente em tecnologia e concentrando os esforços em menos unidades. Abrir novas unidades faz pouco sentido no atual cenário fiscal e de pessoal da polícia. Ao fim e ao cabo, as principais bandeiras políticas que elegeram o atual governador na área de segurança pública já estão anacrônicas para o mundo de hoje.
A pandemia tem se revelado uma aliada para a melhoria de nossas policiais. Em São Paulo, por exemplo, está se investindo na expansão das delegacias eletrônicas o que pode melhorar o atendimento das pessoas e a PM possui quadros muito competentes para expandir o seu policiamento comunitário e fortalecer a formação e o trabalho das rádios patrulhas. O programa vizinhança solidária é um sucesso e precisa expandir mais. As nossas polícias precisam de ações que mudem as mentalidades reinantes e que privilegiem uma polícia que preserve a vida. Para isso, investimentos na modernização das academias de polícia são fundamentais. É preciso, ainda, ser transparente com a questão salarial dos policiais e tentar criar formas de melhorar as condições dos servidores da segurança pública. A independência da Ouvidoria precisa ser aprofundada e não diminuída. Por fim, é preciso entender que crime é o resultado de problemas sociais e para lidar com ele é preciso que educação, saúde e assistência social trabalhem em cooperação com a segurança pública. Desde as eleições, o mundo mudou muito e o governo de São Paulo precisa ser mais calcado naquilo que melhora as polícias e não naquilo que aparece bem na propaganda. O competente Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Gen. Campos, afirmou que o governo não tem compromisso com o erro, a hora de mudar é agora.
Artigo publicado originalmente na página do Estadão, em 17 de junho de 2020
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