Autor: Marcel Basso, delegado de polícia e especialista em Direito Penal e Processo Penal
Implementadas em território nacional desde 2015, as Audiências de Custódia passaram a viger no pátrio ordenamento jurídico para atender a comandos normativos internacionais previstos em Pactos e Tratados dos quais o Brasil é signatário.
Sua constitucionalidade já foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347.
Prevê o artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.
No mesmo sentido o artigo 5º, item 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade” (grifos nossos).
Em âmbito interno, as legislações penais e processuais sofreram recentes alterações com o advento do popularmente conhecido “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/2019). Dentre as mudanças trazidas pela contemporânea norma, uma delas foi a alteração do artigo 310 do Código de Processo Penal e a introdução do seu parágrafo quarto.
Destarte, após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público. A não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva.
Diante do que se expôs até este momento, é possível concluir que a Audiência de Custódia tem como objetivo dar celeridade à análise Judicial quanto à formalidade e legalidade da Prisão em Flagrante, bem como, possibilitar, em menor tempo possível, que o autuado responda criminalmente sem ter sua liberdade constrita.
Nesse diapasão, parece incontroversa a importância das Audiências de Custódia como garantia de liberdade e efetividade do Princípio da Decisão Judicial em tempo hábil.
Ocorre que a doutrina que trata sobre o tema acrescenta que as Audiências de Custódia possuem mais uma finalidade além da celeridade em eventualmente colocar o preso em liberdade, qual seja: a verificação de eventuais maus tratos ou até de tortura em decorrência da atividade policial que gerou a prisão em flagrante do autuado.
É bem verdade que os pilares inspiradores dos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos (inclusive os supracitados), bem como da nossa própria Carta Magna, advém de uma legítima repulsa aos abusos cometidos historicamente nos períodos de totalitarismo e Estados Policiais, dos quais o Brasil lamentavelmente fez parte entre 1964 e 1985.
Contudo, desde a promulgação da vigente Constituição Cidadã, deu-se início a outra perspectiva das atividades policiais e de persecução penal como um todo, exigindo-se conduta dos operadores policiais limitadas às garantias fundamentais previstas expressa ou implicitamente na Constituição e nos Tratados dos quais o Estado Brasileiro aderiu.
Portanto, a tão positiva e necessária mudança de paradigmas da atuação policial deu ensejo a previsões constitucionais e legais por todo o ordenamento jurídico, endossando a virtude de se investigar e de se processar sob o crivo das garantias individuais em um sistema constitucional acusatório.
Tanto é assim, que a Lei Maior é taxativa em seu artigo 144, parágrafo 4º que: “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
Pois bem, retomando o tema inicial, sabe-se que nenhum direito fundamental é absoluto e que a relativização ou flexibilização destes direitos ganham maior aplicabilidade em tempos de excepcionalidade das relações humanas. Não é diferente quando tratamos do atual cenário pandêmico causado pelo COVID-19.
Seguindo diretrizes internacionais especializadas, os Tribunais de Justiça, Ministério Público e Defensorias Públicas suspenderam seus atendimentos presenciais visando combater a proliferação viral.
Trata-se de exemplo evidente de flexibilização, por exemplo, do livre Acesso à Justiça. Tal flexibilização tem motivos incontestáveis diante da necessidade de se proteger vidas e combater o acúmulo de pessoas. Mas é nesta esteira que também foram suspensas as Audiências de Custódia.
Ora, se as Audiências de Custódia foram suspensas baseando-se exclusivamente na necessidade de se evitar o contato de pessoas em período de pandemia, forçoso concluir que as prisões em flagrante também deveriam ser suspensas, afinal de contas, policiais não são imunes aos vírus. Entretanto, tal raciocínio leva à conclusão óbvia da instalação do caos total na segurança pública.
Logo, o que denota-se, na verdade, é que todo o sistema de persecução penal brasileiro, muitas vezes implicitamente, é verdade, confere legitimidade ao Delegado de Polícia para exercer o filtro constitucional das prisões em flagrante e a análise isenta de eventuais abusos policiais, exercendo as funções judiciais taxativamente determinadas nos comandos internacionais.
A necessidade de suspensão das Audiências de Custódia ratifica o raciocínio jurídico de que elas são imprescindíveis, realmente, mas possuem o escopo da celeridade da análise jurisdicionall sobre os aspectos formais do Flagrante e da viabilidade de tão logo desencarcerar o investigado, contribuindo para uma política criminal de “desafogamento” do sistema penitenciário.
Ou seja, a elaboração do Auto de Prisão em Flagrante e as demais peças pertinentes, realizadas por um Delegado de Polícia, já atende aos anseios das normas que elevam a necessidade de salvaguarda dos direitos humanos. Isso resta cada vez mais evidente ao passo que se exigem requisitos análogos para se ingressar nas carreiras de Juiz de Direito ou de Delegado de Polícia (formação Acadêmica em Direito; prática jurídica comprovada; concurso de provas e títulos, etc).
Fugir deste entendimento, ou seja, defender a imprescindibilidade das Audiências de Custódia para outros fins que não os da celeridade e desencarceramento, é gerar uma de duas consequências igualmente catastróficas: 1) uma demanda desenfreada de Habeas Corpus e consequentes solturas de todos aqueles presos em flagrante que não passaram, presencialmente, diante de um Juiz de Direito (seja antes de 2015, seja pelo período de pandemia) ou; 2) suspender as prisões em flagrante para manter-se coerência nos fundamentos que suspenderam as Audiências de Custódia.
Portanto, frisa-se, não há nada de inconstitucional ou de ilegal na suspensão das mencionadas Audiências diante do cenário pandêmico, isto porque elas tem como objetivo maior a celeridade e o desencarceramento, pois as demais garantias fundamentais (análise dos fatos e sua subsunção a tipo penal; presença das hipóteses previstas nos artigos 302 e 303 do CPP; ausência de maus tratos, etc) estão asseguradas quando o detido é apresentado ao Delegado de Polícia (Autoridade de Polícia Judiciária com Funções Judiciais).
Concluímos que não se trata de atribuir ao Delegado de Polícia funções jurisdicionais (diferentes de Judiciais) e nem de se ventilar o fim das Audiências Judiciais de Custódia. Ao contrário, busca-se legitimá-las ainda mais como impreteríveis para firmar a incansável busca por uma persecução penal cada vez mais constitucional, garantista, acusatória e ao mesmo tempo, célere. Todavia, pontua-se a necessária distinção sobre suas finalidades e visa impedir que se ocorra o caos na segurança pública ao se cogitar suspender prisões em flagrante em períodos excepcionais ou de se entender, no futuro, que foram todas ilegais pela suspensão das Audiências de Custódia, evitando que os Tribunais passem a receber esse tipo de demanda.
Resta, portanto, evidente, que o Delegado de Polícia é a Autoridade constitucionalmente legitimada para atender ao espírito jurídico internacional de garantia de direitos fundamentais aos detidos, sendo que a atual suspensão das Audiências de Custódia não implica em qualquer ilegalidade ou irregularidade da eventual permanência da prisão do detido em flagrante, pois este foi apresentado à Autoridade com Funções Judiciais, que no Brasil é o Delegado de Polícia.
Autor: Marcel Basso, delegado de polícia e especialista em Direito Penal e Processo Penal
ABR
2020