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A independência funcional do delegado e a polícia judiciária de Estado

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Publicado em: 17 de Dez de 2020

Autores: Marcelo de Lima Lessa, Rafael Francisco Marcondes de Moraes e Ronaldo Augusto Comar Marão Sayeg, Delegados de Polícia em São Paulo e professores da Acadepol

A redemocratização brasileira pela CF de 1988 exigiu mudanças nas instituições públicas, mormente para atender à dignidade humana, erigida como fundamento do Estado democrático de Direito.

Referido comando constitucional implica a execução das atividades mediante observância da legalidade e voltada à tutela dos cidadãos como sujeitos de direitos, precipuamente na etapa preliminar e extrajudicial do processo penal, quando vibrantes os abalos de práticas delitivas.

Nesse panorama, torna-se primordial a função de polícia judiciária, em sua acepção genuína consubstanciada nas atividades tendentes à apuração de autoria, materialidade e demais circunstâncias das infrações penais e ao auxílio à prestação jurisdicional penal, sob direção e responsabilidade do delegado de polícia, carreira jurídica qualificada pela formação policial [1] que, em São Paulo, é privativa de bacharéis em Direito desde 1905, graças à Lei 979, que criou a polícia de carreira.

A investigação criminal vincula-se à Justiça e à salvaguarda do ordenamento para a consecução da devida investigação legal [2], na hígida distribuição das funções de investigar, acusar, defender e julgar. Reclama equidade de seu titular, a assegurar uma polícia judiciária de Estado e não de governo, para atuação sem interferências indevidas, aplicação isonômica da lei e reconstrução da verdade atingível, como garantia do cidadão e filtro contra imputações infundadas.

Nesse contexto encontra-se a independência funcional [3], prerrogativa garantida pela autonomia intelectual para interpretar o ordenamento e decidir, com imparcialidade e isenção, de modo fundamentado, que reafirma a reconhecida discricionariedade do delegado de polícia [4], presente desde 1941 no CPP (artigos 302 e 304, §1º) ao demandar exame técnico-jurídico de requisitos temporais e probatórios para ordenar a prisão em flagrante do suspeito capturado [5].

Inerente ao exercício das atribuições da autoridade policial, a independência funcional, revelada pela discricionariedade regrada na condução das investigações, foi referendada, no âmbito paulista, pela EC 35/12 ao inserir o §3º no artigo 140 da Carta Estadual: “Aos delegados de polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária”.

Aludida prerrogativa está atrelada a juízo revestido na liberdade de convicção motivada, exarado pela autoridade sem se afastar dos limites que lhe fundamentam, a permitir a adoção de uma medida dentre uma gama de soluções juridicamente válidas, imanente e conferida ao operador do Direito para exercer suas funções de acordo com o que sua consciência reputar legalmente amparado. A hierarquia existente restringe-se às questões de caráter administrativo da atividade-meio do órgão e não envolve o aspecto funcional da atividade-fim [6].

A despeito da plena harmonia da independência funcional dos delegados de polícia aos postulados constitucionais e às garantias processuais penais, em especial às máximas da ampla defesa, da motivação e da publicidade, em 2016, o então procurador-geral da república ingressou com a ADI 5.522 em face de referida EC. Alegou, em síntese, suposto vício material, invocando a subordinação das Polícias Civis aos governadores dos Estados, contida no §6º do artigo 144 da Carta Magna, assim como hipotética incompatibilidade com as atribuições do MP de controle externo da atividade policial e de requisição de instauração de inquérito policial e de diligências investigatórias, veiculadas no artigo 129, VII e VIII, também da CF. Em recente primeiro voto do ministro relator Gilmar Mendes, citadas alegações foram acompanhadas, apesar dos desacertos obtemperados. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

Com a devida vênia, os argumentos lançados acerca da pretensa inconstitucionalidade material não prosperam, porquanto partem de premissas equivocadas. Como pontuado, a subordinação ao chefe do Executivo limita-se às matérias de caráter administrativo e não abrange atos de índole funcional, imbricados à autonomia intelectual para a interpretação das normas e tomada de decisões fundamentadas na presidência de investigações criminais, subordinados à lei e não ao arbítrio político do mandatário em exercício.

Narrativa em orientação oposta equivale a admitir ao governante imiscuir-se em decisões de cada ato funcional do titular da investigação criminal, situação inaceitável, a ensejar retrocesso histórico, uso político das instituições de polícia judiciária como instrumentos de perseguição ou privilégios e sujeição a mandos e desmandos nada democráticos.

Diverso do opinado na inicial da ADI, a independência funcional não se confunde e não confere autonomia administrativa ou financeira ao órgão. Refere-se à carreira de delegado de polícia “nos atos de polícia judiciária” e é intrínseca ao exercício de suas funções.

De igual sorte, a independência funcional do delegado de polícia em nada afeta atribuições da acusação. Ao contrário, intensifica a exigência de fundamentação nos atos de polícia judiciária, amplia a transparência e o controle externo da atividade policial e destaca o atendimento motivado de requisições formuladas por agentes ministeriais, como ocorre nas requisições de exames expedidas pelas autoridades policiais aos peritos, também dotados de autonomia funcional (Lei 12.030/09, artigo 2º).

O que a independência funcional rejeita é a ingerência espúria no cumprimento das funções de agentes públicos, repita-se, sem qualquer prejuízo à subordinação no âmbito administrativo, refletida, por exemplo, na escolha de cargos de chefia, na edição de atos normativos infralegais destinados ao aprimoramento e à boa execução dos serviços, na gestão de recursos humanos e materiais, na divisão do volume de trabalho ou na priorização de políticas públicas.

Destarte, mencionada prerrogativa rechaça o famigerado ilícito de hermenêutica [7] nos atos decisórios das autoridades policiais, salvo culpa grosseira, má-fé ou abuso, cenário corroborado pela nova lei de abuso de autoridade, ao estipular que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” (Lei 13.869/19, artigo 1º, § 2º) [8].

Nessa conjuntura, destacam-se dois enfoques da independência funcional dos delegados de polícia:

1) Em relação à condução da investigação, isto é, na avaliação e no rumo das providências consoante circunstâncias do caso e ordem cronológica com que os elementos são obtidos, tais como na determinação e no controle de legalidade da diligência a ser empregada, no momento para sua execução e nas técnicas operacionais úteis para a apuração, ações decorrentes da titularidade do delegado de polícia sobre a investigação criminal;

2) Em relação aos juízos de caráter jurídico, consistentes na liberdade de convicção motivada na indispensável classificação legal dos casos, do que são exemplos os enquadramentos em boletins de ocorrência, termos circunstanciados, portarias, decisões de indiciamento (incluindo a decretação de prisões em flagrante), relatórios finais e representações por medidas cautelares, de acordo com os substratos coligidos até o instante da adequação típica.

Essa liberdade de decisão diante de um caso concreto faculta que a autoridade opte motivadamente por uma entre várias soluções possíveis, todas válidas perante o Direito, de acordo com juízos de legalidade positivados com acentuada flexibilidade e com limites para contenção, os quais, se ultrapassados, tornam o ato arbitrário e ilícito, autorizando avocação ou redistribuição dos autos investigatórios (Lei 12.830/13, artigo 2º, §4º) [9].

Logo, é inegável que ao longo da investigação o delegado de polícia desempenha suas funções ao perscrutar os eventos ouvindo pessoas, requisitando dados e exames periciais em locais, objetos e indivíduos, apreendendo bens e documentos, representando por medidas cautelares, determinando, entre outras, as diligências do artigo 6º do CPP, cada qual executada consoante dispositivos dos quais a autoridade se vale a fim de alcançar a verdade possível sem se desprender da licitude, com autonomia intelectual de expressão do pensamento à luz do Direito.

A independência funcional preconiza que a atuação da autoridade não fica ao livre arbítrio desta, pois sujeita-se não apenas à sua consciência, mas à Constituição e às leis. Aliás, nesta ordem: Constituição, leis e, por fim, consciência [10]. Daí porque a exigência da respectiva motivação. Impõe maior clareza e probidade, ao reclamar deliberações justificadas, inibindo interesses velados ou ilegítimos e viabilizando maior controle, tanto interno pelos órgãos correcionais, quanto externo, pela sociedade e pelo Estado, por meio do MP, da Defensoria Pública, da OAB e do Judiciário.

Não há espaço honesto para opiniões preconceituosas acerca da liberdade de convicção motivada nos atos de polícia judiciária, que denotam o entendimento jurídico do delegado de polícia, sobretudo nas classificações de fatos e consequências delas decorrentes, muitas com imediata restrição da liberdade e da propriedade do investigado. Sob um prisma teleológico e epistemológico, para além de uma prerrogativa da autoridade, a independência funcional resguarda garantias fundamentais dos indivíduos e da própria sociedade.

A análise jurídica do delegado de polícia, ainda que vestibular na lapidação extrajudicial do fato bruto potencialmente criminal, não difere daquela realizada pelo promotor ao formar sua opinião e propor a ação penal ou o arquivamento do inquérito policial, tampouco do exame pelo juiz ao prolatar a sentença, todos integrantes de carreiras jurídicas e graduados nos mesmos bancos universitários [11]. A avaliação e as tipificações são rotineiras desde o limiar da investigação para determinar diligências, verificar hipóteses e definir procedimentos a serem adotados, dentre os quais o inquérito policial via portaria ou auto prisional, o termo circunstanciado ou o boletim de ocorrência, caso a autoridade, motivadamente, não vislumbre existência de flagrante delito [12].

Ressalta-se que divergências entre convicções de cada operador do Direito, desde o delegado de polícia, passando pela acusação e pela defesa, até chegar ao magistrado (incluindo desembargadores e ministros), enriquecem o debate jurídico, legitimam a prestação jurisdicional e tornam o processo mais embasado.

Não se pode perder de vista que a independência funcional justifica-se para obstar intromissões escusas nas manifestações técnicas de autoridades, para que não receiem decidir de modo idôneo e motivado. Basta imaginar um promotor que hesite em oferecer uma denúncia ou deixar de apresentá-la, ou um juiz apreensivo em sentenciar. Idêntico raciocínio aplica-se aos atos decisórios do delegado de polícia e notadamente na decisão de indiciamento para determinar ou não uma prisão em flagrante, razão pela qual argumentos contrários revelam imputações do mencionado ilícito de hermenêutica, punindo grosseira e injustamente a autoridade por interpretar o ordenamento e desempenhar seus deveres.

Em outras palavras, se a autoridade policial possui o múnus de decidir sobre a liberdade e outros direitos fundamentais dos cidadãos, suprimir ou atentar contra sua livre convicção jurídica motivada representa infligir ao delegado de polícia uma atuação sob a espada de Dâmocles, com permanente e ilegítima pressão de ser censurado indevidamente [13].

A consolidação explícita da independência funcional aos delegados de polícia fortalece a defesa da ordem jurídica, do Estado democrático e das garantias fundamentais pelos protagonistas do processo penal, tornando o Estado-investigação mais profissional e equânime. Não abala atribuições de outros órgãos como o MP e respeita a repartição constitucional de funções e a convivência integrada entre as instituições envolvidas.

[1] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR., Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: JusPodivm, 2018, p.24-25.

[2] BALDAN, Édson Luís. Devida investigação legal como derivação do devido processo legal e como garantia fundamental do imputado. In: KHALED JR., Salah (coord.). Sistema penal e poder punitivo. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.156-184.

[3] SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de polícia em ação. Salvador: JusPodivm, 2021, p.128.

[4] BRANCO, Tales Castelo. Da prisão em flagrante. São Paulo: Saraiva, 1988, p.125; MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. São Paulo: Atlas, 2003, p.759.

[5] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2020, p.174-175.

[6] HOFFMANN, Henrique; SANNINI, Francisco. Independência funcional é prerrogativa do delegado e garantia da sociedade. Consultor Jurídico, São Paulo, 2 jun. 2016; SAYEG, Ronaldo. Inquérito policial democrático: uma visão moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p.33.

[7] A expressão ilícito ou crime de hermenêutica consta ter sido cunhada por Rui Barbosa, na defesa de juiz que se recusou a cumprir disposições da legislação gaúcha por considerá-las inconstitucionais e foi processado e condenado pelo artigo 226, do Código Penal de 1890, que punia a conduta de “exceder os limites das funções próprias do emprego”. BADARÓ, Gustavo; BREDA, Juliano (Coord.). Comentários à lei de abuso de autoridade. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p.29-30; LEITÃO JR., Joaquim. O delegado de polícia pode cometer “crime de hermenêutica”? In.: LEITÃO JR. Joaquim; HOFFMANN, Henrique (Org.). Tratado contemporâneo de polícia judiciária. Cuiabá: Umanos Editora, 2019, p.33-38.

[8] LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova lei de abuso de autoridade. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.24-25.

[9] COELHO, Emerson Ghirardelli. Investigação criminal constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2017, p.79-81.

[10] SABELLA, Walter Paulo. Independência funcional e ponderação de princípios. Revista APMP, São Paulo, XIII, 50, 2009.

[11] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p.336.

[12] Em São Paulo, há diretriz na Recomendação DGP-1/2005, item XVI: “Decidindo pela inexistência de situação jurídica caracterizadora de flagrante, deverá a autoridade policial registrar o fato em boletim de ocorrência, sem emitir recibo de entrega de preso, em seguida adotando as providências de polícia judiciária cabíveis, inclusive para responsabilização criminal dos autores da detenção indevida, se for o caso”.

[13] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2020, p.254-255.

 

Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, em 16 de dezembro de 2020

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