O direito de o servidor público ocupante de cargo na Polícia Civil receber gratificação pela prestação de trabalho noturno, período compreendido entre às 22 (vinte e duas) horas de um dia e às 5 (cinco) horas do dia seguinte, está fundamentado no inciso IX, do art. 7º, da Constituição Federal[i]. O mencionado dispositivo estabelece que a remuneração do trabalho noturno deve ser superior à do diurno.
Neste sentido, o art. 73, do Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943[ii], Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), determina que a remuneração pelo trabalho noturno terá um acréscimo de 20% (vinte por cento), pelo menos, sobre a hora diurna.
Por outro lado, o § 3º, do art. 39, da Constituição Federal[iii], no intuito de eliminar qualquer tipo de diferenciação entre os profissionais que exercem atividade laboral em instituições privadas e aqueles que trabalham no serviço público, estabeleceu que o pagamento do trabalho noturno superior ao diurno é direito de todos os trabalhadores que exerçam suas funções em tais condições.
Isso significa que o § 3º, do art. 39, da Constituição Federal, deixou claro que a gratificação por trabalho noturno não é um direito exclusivo dos trabalhadores da iniciativa privada e, consequentemente, deve ser estendido aos servidores públicos.
Acrescente-se, ainda, que o legislador utilizou, no § 3º, do art. 39, da CF, a expressão genérica “servidores ocupantes de cargo público”, ou seja, não excluiu os policiais civis da relação dos funcionários que têm o direito de receber essa vantagem pecuniária.
Vale lembrar que este dispositivo está em perfeita harmonia com o art. 5º, da Constituição Federal, que estabelece que todos são iguais perante a lei, não havendo, portanto, a possibilidade de qualquer tipo de discriminação.
No mesmo sentido, o § 3º, do art. 124, da Constituição do Estado de São Paulo[iv], confirmou as garantias estabelecidas pela Carta Magna, assegurando aos servidores públicos o direito à remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, previsto nas normas do inciso IX, do art. 7º e do § 3º, do art. 39, da Constituição Federal.
Saliente-se que o pagamento da hora noturna em patamar diferenciado é um direito social de segunda geração, por assegurar igualdade e melhores condições de vida às pessoas. Os direitos sociais são considerados de cunho fundamental e, como tal, têm aplicação imediata, conforme estabelece a norma do § 1º, do art. 5º, da Carta Magna[v].
Em outras palavras, o direito à remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, por ser considerado um direito fundamental, não depende de regulamentação.
Efetivamente, as normas autoaplicáveis são aquelas que vigoram imediatamente, sem a necessidade de qualquer outra norma posterior. Isso significa que elas têm o poder de produzir todos os seus efeitos, independentemente de uma lei regulamentadora.
Da análise das mencionadas normas constitucionais, conclui-se que não há razão para que o Estado de São Paulo não proceda ao imediato pagamento da hora noturna em valor diferenciado aos policiais civis plantonistas.
De outra parte, é incontestável que a jornada de trabalho realizada em regime de plantão, no período noturno, exige do policial civil maior esforço, ocasionando desgaste, razão pela qual, por questão de justiça, o trabalho realizado em tais condições deve ser remunerado diferenciadamente.
De fato, o trabalho na escala noturna, realizado para garantir a continuidade do serviço policial, acarreta sérios problemas, entre os quais se destacam: a mudança no padrão do sono, dificuldades nos relacionamentos, cansaço constante, má alimentação.
Portanto, a remuneração da hora noturna superior à hora diurna é uma compensação aos danos que a atividade de polícia judiciária exercida em condições adversas acarreta.
Finalmente, resta abordar a questão da inconstitucionalidade das normas que vedam o pagamento da gratificação por trabalho noturno aos policiais civis do Estado de São Paulo.
O Governo do Estado de São Paulo, na esfera administrativa, se nega a pagar a gratificação por trabalho noturno aos policiais civis sob a alegação equivocada de que: os mencionados servidores estão submetidos a Regime Especial de Trabalho Policial (RETP) com remuneração diferenciada, circunstância que supostamente afasta o pagamento de remuneração superior pelas horas noturnas, nos termos do art. 44, da Lei Complementar nº 207, de 05 de janeiro de 1979, Lei Orgânica da Polícia Paulista[vi].
Alega, ainda, que o pagamento de gratificação por trabalho noturno aos policiais civis é expressamente vedado pelo inciso II, art. 9º, da Lei Complementar nº 506, de 27 de janeiro de 1987[vii], que concede gratificação por trabalho noturno aos funcionários e servidores da Administração Centralizada e das Autarquias do Estado e dá outras providências.
Entretanto, o entendimento do Governo do Estado de São Paulo está totalmente em dissonância com as mencionadas normas constitucionais.
Com efeito, o art. 44, da Lei Complementar nº 207, de 05 de janeiro de 1979, ao estabelecer o Regime Especial de Trabalho Policial, impondo aos policiais civis bandeirantes a dedicação integral e prestação de serviço em condições especiais, por si só, não excluiu a gratificação por trabalho noturno.
O mencionado dispositivo visa gratificar o policial civil especificamente pela prestação de serviços em condições precárias de segurança; pelo cumprimento de horário irregular de trabalho; pela proibição do exercício de atividade remunerada, exceto àquelas expressamente previstas; e pelo risco de o policial tornar-se vítima de crime no exercício ou em razão de suas atribuições.
Dito de outra forma, o RETP não se destina a compensar o policial civil pelo trabalho noturno.
É importante que se entenda que o simples fato de o inciso I, do art. 44, da Lei Complementar nº 207, de 05 de janeiro de 1979, se referir a “plantões noturnos” não significa que esta norma se destina a remunerar o policial civil pelo trabalho realizado à noite.
Efetivamente, se a remuneração pelo trabalho noturno dos policiais civis estivesse contida no art. 44, da Lei Orgânica da Polícia Paulista, esta norma deveria mencionar, de maneira expressa, tal fato, pois no sistema jurídico brasileiro não é permitida a interpretação extensiva para restringir direito constitucional.
Ademais, o legislador infraconstitucional não pode utilizar subterfúgios para deixar de cumprir o inciso IX, do art. 7º, e o § 3º, do art. 39, da Constituição Federal, que garantem o sagrado direito de o policial civil ser remunerado pelo trabalho noturno, principalmente, porque sua atividade está entre aquelas mais estressantes e perigosas do mundo.
Desta forma, inciso II, art. 9º, da Lei Complementar nº 506, de 27 de janeiro de 1987, que veda o pagamento da gratificação por trabalho noturno aos servidores que percebem a gratificação pela sujeição ao Regime Especial de Trabalho Policial, é flagrantemente inconstitucional.
Finalmente, é importante ressaltar que o fato de o policial civil trabalhar no sistema de plantão não o impede de ser recompensado pelo trabalho noturno, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, por intermédio da Súmula nº 213, que: “É devido o adicional de serviço noturno, ainda que sujeito o empregado ao regime de revezamento”.
Portanto, os argumentos apresentados pela Administração para não pagar a gratificação por trabalho noturno são totalmente improcedentes, porque não encontram respaldo na legislação vigente, circunstância que demonstra a obrigatoriedade da concessão imediata deste direito aos policiais civis paulistas.
Mário Leite de Barros Filho é Delegado de Polícia, Professor de Direito Administrativo Disciplinar da Academia de Polícia do Estado de São Paulo (ACADEPOL) e Assessor Jurídico Institucional do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (SINDPESP).
[i] Constituição Federal
Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IX – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno.
[ii] Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
Art. 73. Salvo nos casos de revezamento semanal ou quinzenal, o trabalho noturno terá remuneração superior a do diurno e, para esse efeito, sua remuneração terá um acréscimo de 20 % (vinte por cento), pelo menos, sobre a hora diurna.
- 1º A hora do trabalho noturno será computada como de 52 minutos e 30 segundos.
- 2º Considera-se noturno, para os efeitos deste artigo, o trabalho executado entre as 22 horas de um dia e as 5 horas do dia seguinte.
[iii] Constituição Federal
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.
- 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.
[iv] Constituição do Estado de São Paulo
Artigo 124 – Os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público terão regime jurídico único e planos de carreira.
- 3° –Aplica-se aos servidores a que se refere o “caput” deste artigo e disposto no artigo 7°, IV, VI, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII, XXIII e XXX da Constituição Federal.
[v] Constituição Federal
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
- 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
[vi] Lei Complementar n° 207, de 05 de janeiro de 1979 – Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo
Artigo 44 – O exercício dos cargos policiais civis dar-se-á, necessariamente, em Regime Especial de Trabalho Policial – RETP, o qual é caracterizado:
I – pela prestação de serviços em condições precárias de segurança, cumprimento de horário irregular, sujeito a plantões noturnos e a chamadas a qualquer hora;
II – pela proibição do exercício de atividade remunerada, exceto aquelas:
- a) relativas ao ensino e à difusão cultural;
- b) decorrentes de convênio firmado entre Estado e municípios ou com associações e entidades privadas para gestão associada de serviços públicos, cuja execução possa ser atribuída à Polícia Civil;
III – pelo risco de o policial tornar-se vítima de crime no exercício ou em razão de suas atribuições.
[vii] Lei Complementar nº 506, de 27 de janeiro de 1987
Artigo 9º – O disposto nesta lei complementar não se aplica:
II – aos funcionários e servidores que percebem a gratificação pela sujeição ao Regime Especial de Trabalho Policial, de que tratam os artigos 44 e 45 da Lei Complementar nº 207, de 5 de Janeiro de 1979;